terça-feira, 26 de março de 2013

Para um cara de óculos - o cotidiano com a morte

É comum ao leigo perguntar sobre o equilíbrio emocional do perito criminal. Ainda mais quando se enfrenta, como diria um professor meu, o "produto final da maldade humana".

No entanto, é bom frisar, nem sempre o que examinamos é resultado de um ato maldoso ("acidentes acontecem") e esse encargo não é apenas do perito criminal (pensem num médico, delegado ou, também e mais comumente, um gari!). Existem objetos e situações incrivelmente inusitados em lugares nunca esperados por todos! Sejamos leigos ou profissionais.

Fiz uma pesquisa simples de imagens no Google usando a palavra "nojo":


Foi aí que percebi que existem outras coisas que nos deixam enauseados além de cadáveres putrefeitos.

Vocês ainda não perceberam, não é?

Então vejam as imagens abaixo:


Enquanto para uns algo é desagradável, para outros pode ser perfeitamente natural e inclusive saudável!

Evidentemente que a repulsa significa alguma coisa. Normalmente algo que não é bom para a nossa saúde (física ou mental), mas percebam que parte delas nós mesmos imaginamos!

Vejam os exemplos abaixo:


O primeiro caso é plausível, mas aconteceu? E o segundo é fora da realidade (foto montagem).

Em perícia, muitos elementos podem gerar mal estar. Odores e texturas desagradáveis fazem parte deste universo. Talvez animados pela ideia de que a conduta delituosa, aquela ação marginal à sociedade sã e boa, induz a compreensão de algo doente, separado, descartado, ruim. O que é ruim jogamos fora, cuspimos, regurgitamos, deixamos sem cuidados para que desapareça pelo apodrecimento. Associar tudo isso a lixo e matéria putrefeita não é difícil. Somos levados, até inconscientemente, a ter nojo destas coisas.

Por outro lado, temos a ideia de "ciclo da vida". E ela se faz com a renovação dos recursos. A transformação do descartado em matéria estrutural. O estrume alimenta a planta que nos alimenta. O que vai, volta!

O perito criminal, e outros profissionais assemelhados, se deparam, frequentemente, com situações desagradáveis à maioria das pessoas (que são predominantemente instruídas nos produtos culturais denominados "agradáveis" para, entre outros objetivos, se conduzam saudavelmente na vida), mas que isso não é obstáculo às suas funções após criterioso treinamento.

Praticamente todos nós somos "treinados" para viver com saúde (física e mental). As pessoas "leigas" costumam tratar o cotidiano conforme aprenderam em casa, na escola, no trabalho e na religião. Os policiais civis e militares, os médicos, garis, peritos criminais e outros profissionais, cada qual com sua particularidade, são treinados a enfrentar situações "adversas" com um controle maior de sua repulsa, seja ela natural ou cultural.

O controle oriundo do treinamento é preciso para cumprir a função estabelecida na profissão. O que não significa que ficamos sem sensibilidade.

Mesmo em dez anos de trabalhos periciais não deixo de me sensibilizar com certos casos.

Marcas de arrastamento no asfalto (atropelamento em novembro de 2004).

Existem acidentes que não apenas vemos o resultado final do confronto veículo X pedestre, p. ex., mas conseguimos, pelos vestígios, refazer toda a dinâmica e não é fácil imaginar o que não se passou na cabeça da vítima. Nem todos os atropelamentos resultam em morte instantânea.

Piso de residência popular onde uma mãe foi assassinada (em junho de 2004).

A maioria das vítimas está na faixa da população carente. Às vezes chegamos grandes e poderosos. Estamos vestidos, calçados e totalmente saciados em nossas necessidades básicas e até voluptuárias. Mas existem lugares que visitamos onde não há espaço suficiente para uma família, e que, aos olhos do Estado, chegam a ser transparentes (foto acima). Muitas vezes vamos apenar "limpar" o local, mas não "saciá-lo" de suas necessidades básicas. Isso é repugnante.

O início da carreira foi impactante. Eu era advogado e só mexia com papéis e teses jurídicas, mas, gradualmente, com a ajuda dos colegas veteranos e com os protocolos de operação, aprendi a separar o momento de tomar nota "friamente" e o momento de derramar lágrimas. Temos de fazer as duas coisas para ter equilíbrio.

Espero ter auxiliado o Hugo com sua pergunta sobre o tema.

Um comentário:

  1. André,
    Agradeço muito pelas explicações, ainda mais pelo texto, muito bem escrito, lúcido e totalmente cativante. Talvez em algum momento futuro você possa nos brindar com um livro a respeito de suas experiências. Auxiliou e muito, mais uma vez obrigado.
    Abraços.
    Hugo.

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